DA ARQUITETURA A QUESTÃO SOCIAL
“Se a poesia está extinta nos livros, agora existe na forma das cidades, está estampada nos rostos. E não se deve buscá-la apenas onde está: é necessário construir a beleza das cidades, dos rostos: a nova beleza será de situação”
Guy Debord,1958
A história da Arquitetura e o Urbanismo Social no século 20 tende a confundir-se com o crescimento da periferia das grandes cidades. A realização do paradigma modernista – Plano Voisin, Vila Radieuse , de Le Corbusier – materializou-se mundo afora através da produção de extensas áreas habitacionais localizadas em geral nas periferias urbanas do mundo, criando aquilo que passou a ser chamado de cidade subalterna ou [sub] urbana (no sentido de não ter as características ditas urbanas).
A partir da década de 60 essa tendência parece reverter-se. A crítica ao urbanismo modernista e a redescoberta das assim chamadas qualidades da cidade tradicional trouxeram para a prática profissional uma nova atitude diante do projeto das novas áreas habitacionais; uma conduta projetual de inserção do novo no assim chamado centro histórico, buscando ao que parece a integração espacial e social das novas áreas de habitação social à cidade.(Viva-Centro, São Paulo).
Nos anos oitenta essa conduta projetual pareceu não apenas correta, mas também a oportunidade de redimir os fracassos da historicamente desastrosa relação Arquitetura social/cidade. Seria um novo modo, mais apropriado arquitetônica e socialmente, de implementar os projetos habitacionais. Passados vinte anos uma avaliação menos conceitual e mais próxima da realidade vem revelar as implicações dessa estratégia de integração: implicações sociológicas, políticas, arquitetônicas e as, talvez menos perceptíveis, mas nem por isso menos efetivas, implicações decorrentes das modificações sofridas pela configuração espacial da malha urbana quando da implantação de uma nova área de habitação social em área urbana da cidade.
A tendência surgida nos anos sessenta na direção de buscar uma maior integração das novas áreas habitacionais à cidade é em parte fruto da crítica ao modo de vida produzido pelos assim chamados conjuntos habitacionais modernistas.
Jane Jacobs escreveu talvez o paradigma nessa linha de crítica em seu Vida e morte nas grandes cidades americanas (1968) . Perda de identidade, segregação, sujeira, deterioração e crime; esse é o produto em geral detectado na pesquisa. Jacobs aponta, entre outras, razões locacionais e de desenho urbano para o fracasso da cidade modernista. Esse pensamento parece ter-se generalizado na cultura arquitetônica contemporânea muito embora se saiba, por experiência, que nem todo o conjunto habitacional de periferia é um fracasso desde o ponto de vista sociológico simplesmente por ser configurado ao modo modernista; sem a rua como elemento estruturador.
Outra fonte de inspiração para a tendência integradora parece vir do redescobrimento, também ocorrido nos anos sessenta, da assim chamada cidade tradicional. Autores como Aldo Rossi, Hermam Hertzberg,os Irmãos Krier repropuseram a arquitetura da cidade como aquela capaz de propiciar um modo de vida ideal, agora mais urbano, mais complexo, distinto daquele idealizado para o homem modernista; em geral concebido como parte de um contínuo natural preferencialmente arborizado. A redescoberta da cidade tradicional e a formalização da crítica do urbanismo modernista forneceram a base conceitual para uma nova atitude, não apenas do pensamento arquitetônico diante das questões urbanas, mas principalmente da atitude de arquitetos e administrações municipais ditas progressistas em diversos países.
A distribuição espacial dos bairros no território da cidade tende em geral a refletir a distribuição dos diversos segmentos sociais. Pode-se dizer que a organização espacial dos diferentes extratos de renda tende a ser legitimada pela história da cidade; uma espécie de organização natural de acordo com a qual as classes mais abastadas tendem a concentrar-se em certas zonas, a classe média em outras e os extratos de renda mais baixa em outras ainda. Essa distribuição é freqüentemente alterada ao longo do tempo e áreas outrora periféricas passam à condição de áreas nobres. Áreas outrora residenciais de classe alta tornam-se distritos comerciais. Essa dinâmica urbana natural, típica das grandes cidades do mundo ocidental, tem clara explicação a partir da lógica econômica de ocupação do território. ocupação do território.
Freqüentemente essa tendência, de modo certo segregativa, tende a ser atenuada nos bairros mais antigos das grandes cidades onde uma variedade de tipos residenciais – apartamentos de tamanhos diversos, casas mais novas e casas mais antigas – misturam-se muitas vezes ao longo de uma mesma rua produzindo uma certa complexidade de tipos arquitetônicos seguida freqüentemente por uma maior variedade de população em termos de extratos de renda.
Um dos aspectos, talvez o mais evidente, da chamada cidade tradicional é sua caracterização física como artefato arquitetônico produzido coletivamente ao longo do tempo. Na construção desse artefato, diversidade e unidade tendem a dialogar através da recíproca relação entre os âmbitos privado e público ou coletivo. A individualidade de cada lote tende a ser compensada por estratégias construtivas que coletivizam-se ao longo do tempo fazendo com que os diferentes bairros da cidade sejam caracterizados por alguns tipos de edificação típicos de uma época e que, no conjunto, terminam por assegurar a identidade daquela parte da cidade.
E a cidade dita informal? Com sua estética singular com sua tipologia única? A arquiteta Paola Bernstein em seu livro a Estética das favelas aborda essas aglomerações antes tidas, como antiestéticas e insalubres que chegavam a beirar o caos. criando três elementos conceituais que tentam explicar a organização das favelas em níveis de escala e de significado. As aglomerações humanas “desordenadas” ou “orgânicas” ou “rizomáticas” tem sua estrutura uma caracterização morfológica - estética intrínseca a elas A questão que se discute já não é mais, felizmente, relativa à remoção e relocação dos habitantes das favelas para áreas longínquas da cidade.
Hoje, o direito à urbanização é um dado adquirido e incontestável, ou seja, a questão já não é mais simplesmente social e política, mas deve passar obrigatoriamente por uma dimensão cultural e estética.
Sempre houve um tabu, em se tocar nas questões culturais e principalmente estéticas das favelas, mesmo se sabendo, que o samba e o carnaval (e várias outras festas populares e religiosas), ícones da nossa cultura popular, se desenvolveram e possuem ligação direta com esses espaços, e que, ao mesmo tempo, várias favelas foram removidas por serem consideradas "antiestéticas".
Em contrapartida, inúmeros artistas, tanto da própria favela quanto da cidade formal, ou até mesmo estrangeiros, se influenciaram e buscaram inspiração nessa "arquitetura" das favelas. Além de fazer parte do nosso patrimônio cultural e artístico, as favelas se constituem através de um processo arquitetônico e urbanístico popular único singular, que não somente difere, ou é o próprio oposto, do dispositivo projetual tradicional da arquitetura e urbanismo eruditos, mas também compõe uma estética própria, uma estética das favelas, que é completamente diferente da estética da cidade formal e possui características peculiares. Do caso mais extremo onde a favela era removida e seus habitantes relocados em conjuntos habitacionais cartesianos modernistas, até o caso mais brando atual, onde os arquitetos da pós-modernidade passaram a intervir nas favelas existentes visando transformá-las em bairros, as lógicas racionais dos arquitetos e urbanistas ainda é prioritária e estes acabam por impor a sua própria estética que é quase sempre a da cidade formal.
Ou seja, a favela deve se tornar um bairro formal para que uma melhor integração da favela ao resto da cidade se torne possível. Mas as favelas já não fazem parte da cidade? Será que essa integração formal é necessária? Esta não seria uma imposição autoritária de uma estética formalista visando uma uniformização do tecido urbano? Porque não se assume de uma vez a estética das favelas sem as pequenas imposições estéticas, arquitetônicas e urbanísticas, dos atuais projetos de urbanização que acabam provocando a destruição da arquitetura e do tecido urbano original da favela para criar espaços impessoais (que muitas vezes não são apropriados pela população local, ficando rapidamente deteriorados e abandonados)? Por que o tipo bairro é sempre o exemplo a ser seguido em detrimento do inventivo e rico, tanto culturalmente quanto formalmente, tipo favela? Porque não tentar seguir o tipo Favela, tentando aprender com a sua complexidade e riqueza formal? Essa forma diferente de intervenção, inspirada nas favelas, poderia ser interessante para se atuar também na própria cidade formal (principalmente nos seus limites e fronteiras).A pesquisa da Bernstein demonstra essa idéia:
Fragmento-labirinto(do corpo à arquitetura). (BERNSTEIN) a idéia de abrigo segundo Loos, chega-se a noção que o primeiro abrigo foi a indumentária, a roupa que cobria os primitivos, ora como adorno, ora como proteção das intempéries. Algo que adivinha da necessidade, algo que era produzido sem um pensamento prévio algo momentâneo e essencial. Da observação dos barracos, da forma fragmentária de se construir nas favelas, baseada na idéia de abrigo, que difere completamente da prática da arquitetura projetada por arquitetos.
Os barracos das favelas são construídos inicialmente a partir de fragmentos de materiais heteróclitos encontrados por acaso pelo construtor. Assim, os barracos são fragmentados formalmente. O primeiro objetivo do construtor, que é quase sempre o próprio morador com a ajuda de amigos e dos vizinhos (princípio do mutirão), é de se abrigar ou de abrigar a sua família. Esse primeiro abrigo é quase sempre precário mas já forma a base para uma futura evolução. A partir do momento em que o morador encontra ou compra materiais adequados, ele substitui os antigos e começa a aumentar o barraco.
Nunca existe um projeto preestabelecido para a construção de um barraco, os materiais encontrados formam a base da construção que vai depender do acaso e da necessidade de se achar novos materiais ou de se poder comprá-los. O barraco evolui constantemente, até chegar à casa em alvenaria, mas mesmo assim a construção não acaba nunca, as casas estão constantemente em obras. Mesmo menos fragmentadas formalmente do que os barracos de madeira, as novas casas em alvenaria são fragmentárias pois se transformam de uma forma contínua. A construção é cotidiana, continuamente inacabada. Uma arquitetura convencional, ou seja, uma arquitetura feita por arquitetos, tem um projeto, o projeto é feito antes da construção, e é o projeto que determina o seu fim, o ponto final para se acabar a construção.
Quando não há um projeto não existe uma forma predeterminada para a construção, e assim ela não termina, permanecendo sempre inacabada. Ao invés de arquitetura, a prática construtiva das favelas ligada ao acaso e ao inacabado corresponde mais a uma "bricolagem" . Aquele que "bricola", ao contrário do arquiteto, não vai diretamente ao objetivo, nem busca uma unidade, ele age de forma fragmentária através das idas e vindas de uma atividade não planejada, empírica. A bricolagem seria uma arquitetura do acaso, uma arquitetura sem projeto.
A forma final é resultado do próprio processo construtivo, o objetivo principal do construtor é criar um abrigo. Abrigar significa cobrir, revestir para proteger ou esconder. Ou seja, construir um interior para se entrar, construir um limite entre exterior e interior. Essa separação pode existir em vários níveis a partir do próprio corpo, primeiro há a roupa, depois o abrigo, a casa, o bairro, a cidade etc. A grande diferença entre o abrigar da bricolagem e o habitar da arquitetura é temporal, pois abrigar diz respeito ao que é temporário e provisório, e habitar, ao contrário, ao que é durável e permanente. É como a diferença entre o estar e o ser.
O abrigo é temporário mesmo se ele durar para sempre e a habitação é durável mesmo se ela desabar amanhã. Mas o abrigo, mesmo não sendo concebido como tal, possui o potencial de vir a ser uma habitação, em cada abrigo há um devir-habitação imanente. A grande distinção entre a maneira de tratar o espaço dos construtores das favelas e dos arquitetos é quanto à temporalidade, pois entre o abrigar e o habitar existe um processo espaço-temporal completamente diferente.
Como se os arquitetos espacializassem o tempo e os construtores das favelas temporalizassem o espaço. Essa oposição é clara quando se compara a forma de conceber o espaço dos arquitetos – que partem sempre de projetos, de projeções espaciais e formais para um futuro próximo – com a maneira de construir nas favelas – onde nunca há um projeto preestabelecido e que o contorno da forma da construção futura só aparece quando se começa realmente a construir e esta nunca é fixa e predefinida como em um projeto tradicional. A prática projetual implica também, na maioria dos casos, em uma racionalização da construção e uma simplificação do espaço por modelos ou modulações, ou seja, uma repetição do mesmo, o que não ocorre nas favelas onde por não existir a noção de projeto cada barraco é inevitavelmente diferente do outro.
labiríntico -rizoma(da arquitetura ao urbano) (BERNSTEIN) . Se baseia no estudo do conjunto de barracos, do processo urbano labiríntico das favelas, compreendida através da noção de percurso e conseqüentemente da experiência do espaço urbano espontâneo, que é muito diferente do espaço desenhado por urbanistas.
Ao se sair da escala de abrigo para aquela do conjunto de abrigos, do espaço deixado livre entre os barracos que forma as vielas e os becos das favelas, a figura do labirinto aparece quase que naturalmente ao "estranho" que penetra os meandros da favela pela primeira vez. Além de formar realmente um labirinto formal, os caminhos internos da favela provocam a sensação labiríntica ao visitante principalmente pela falta de referências espaciais urbanas habituais, pelas perspectivas sempre fragmentárias que causam um estranhamento. Se perder faz parte da experiência espacial do labirinto-favela e para não se correr o risco é preciso ter um guia (morador).
O "estranho" mesmo sendo um arquiteto ou urbanista pode se perder facilmente diante da incerteza dos caminhos da favela (qualquer entrada pode ser um beco sem saída) pois ele não possuiu sua planta (que na maioria dos casos não existe). Aí está a grande diferença entre a favela e o labirinto : a favela não possuiu uma planta prévia, ela não foi desenhada, projetada. O labirinto-favela é muito mais complexo, pois ele não é fixo, acabado, ele está sempre se transformando. Nenhuma planta de favela é definitiva, só podem existir plantas momentâneas, e sempre feitas posteriormente. Na favela-labirinto, como a própria favela, se refaz continuamente, essa grande construção coletiva não-planificada.
O tecido urbano da favela é maleável e flexível, é o percurso que determina os caminhos. Ao contrário da planificação urbana tradicional que determina o traçado no projeto na favela as ruas (e todos os espaços públicos) são determinadas exclusivamente pelo uso. Uma diferença fundamental com a cidade planejada diz respeito a relação entre espaços públicos e privados, na favela esses espaços também estão inextricavelmente ligados.
Durante o dia as ruelas se tornam a continuação das casas, espaços semi-privados, enquanto a maioria das casas com suas portas abertas se tornam também espaços semi-públicos. A idéia da favela como uma grande casa coletiva é freqüente entre os moradores. As ruelas e becos são quase sempre extremamente estreitos e intrincados o que aumenta a sensação labiríntica e provoca uma grande proximidade física que provoca todo tipo de mistura. Subir o morro é uma experiência de percepção espacial singular.
Deambulando pela favela se descobre como as crianças que nascem nesse espaço começam a sambar antes de andar direito, na verdade é muito raro se andar reto no morro – impossível de não se pensar na célebre máxima corbusiana do caminho dos homens e dos asnos: "O homem anda reto/.../o asno em zig-zag/.../". Sambar é a melhor representação da experiência labiríntica de se percorrer uma favela, que é o oposto mesmo da experiência urbana moderna, sobretudo das ruas das cidades projetadas racionalmente (o zig-zag dos passistas na avenida retilínea do Sambódromo demonstra bem isso).
A grande diferença entre o labirinto improvisado e espontâneo que é a favela e as cidades projetadas por arquitetos e urbanistas, principalmente aquelas planificadas , é uma inversão da prática projetual e de planejamento urbano: enquanto nas cidades ou nos espaços urbanos completamente projetados, as plantas existem em projeto antes mesmo da cidade real, nos espaços labirínticos como as favelas, é o oposto que acontece, as plantas só são produzidas depois, e são desenhadas a partir do espaço já existente (aerofotografias). A maior especificidade do espaço urbano da favela reside em seu tecido urbano labiríntico cheio de surpresas, que causa uma percepção espacial que é praticamente impossível de ser prevista, ou seja, de ser obtida através de um projeto urbanístico tradicional que automaticamente elimina o próprio mistério do percurso: particularidade fundamental de um labirinto.
Rizoma-labirinto(do urbano ao território) (BERNSTEIN) Diz respeito à ocupação selvagem dos terrenos pelo conjunto de barracos, e sobretudo ao crescimento rizomático das favelas formando novos territórios urbanos, fundamentado pelo conceito de comunidade, independente de qualquer planejamento urbano ou territorial. Como a etimologia vegetal do termo favela (Jatropha phyllacantha) poderia indicar, as favelas são formações "orgânicas" que se constituem por ocupações "selvagens" de terrenos. A própria invasão de espaços vazios determina um ato de demarcação e de um conseqüente processo de territorialização.
Os barracos aparecem no meio da cidade, entre seus bairros convencionais, exatamente como a erva que nasce no meio da rua, dos paralelepípedos ou mesmo do asfalto, criando enclaves, micro-territórios dentro de territórios mais vastos. A invasão de um terreno por abrigos forma um novo território urbano, uma cidadela dentro da cidade, que normalmente possui suas próprias leis.
As favelas se desenvolvem como o mato que cresce naturalmente nos terrenos baldios da cidade, os barracos, como as ervas, aparecem discretamente pelas bordas e acabam ocupando todo o espaço livre rapidamente. Esse tipo de ocupação gera uma situação oposta ao que acontece nas cidades convencionais pois nas favelas, na maioria dos casos, a periferia dos terrenos ocupada, é mais valorizada e antiga do que o centro geográfico. As favelas são acêntricas, ou melhor, excêntricas.
A periferia, a fronteira que separa a favela da cidade formal, passa a funcionar simbolicamente como um "centro", concentrando a maior parte dos comércios e serviços. Além disso, as favelas transbordam os terrenos que elas ocupam, sobretudo pelas relações diversas estabelecidas com o resto da cidade, principalmente as trocas culturais e coletivas, mas também, de uma maneira mais sutil, pelas relações individuais. Uma grande parte dos moradores das favelas trabalha no resto da cidade e às vezes como empregados domésticos, ou seja, dentro dos apartamentos tradicionais dos prédios nos bairros formais adjacentes. A territorialização se faz então através de três níveis diferentes: a própria ocupação do terreno baldio, a situação desses terrenos dentro da cidade, e as relações dos moradores das favelas entre si, através de uma forte idéia de comunidade, e destes com os habitantes da cidade "formal". Esses três níveis seguem o que pode ser chamado de "lógica da erva-rizoma" em oposição à "lógica da árvore-raiz" das cidades planejadas. Já é sabido, como diz Alexander, que "a cidade não é uma árvore" como os urbanistas modernistas pretendiam ao projetar dentro de um sistema racional (estrutura em árvore) as suas cidades. Nessa crítica (pós-moderna), as cidades planejadas por arquitetos e urbanistas (ditas artificiais) seguem uma lógica da árvore, uma ordem simples e binária, e as cidades vernáculas e espontâneas (ditas naturais) seguem uma lógica da semi-treliça, que seria uma ordem mais complexa, múltipla.
As favelas seguem uma "lógica" ainda mais complexa, pois elas estão constantemente em (trans)formação, nunca param de crescer (primeiro horizontal e depois verticalmente) e sobretudo, elas não são tão fixas como as cidades tradicionais, sejam estas planejadas ou não. Além da complexidade espacial das favelas deve-se contar também com a complexidade temporal. Existe uma diferença básica de enraizamento. A cidade projetada, cidade-árvore, é fortemente enraizada em um sitema-raiz, imagem da ordem; a cidade não-projetada (ou parcialmente), cidade-arbusto, funciona segundo um sistema-radícula não tão simples e ordenado; e a favela seria a cidade-erva, seguindo o sistema-rizoma que é bem mais complexo.
O gengibre é um rizoma, assim com a erva daninha. O sistema erva-rizoma é o oposto do da árvore-raiz (e do sistema arbusto-radícula que ainda conserva uma estrutura arborescente) pela sua multiplicidade, acentricidade (ou excentricidade) e instabilidade (em movimento constante). A maior diferença então entre a ocupação planejada e a ocupação selvagem das favelas, diz respeito ao tipo de raiz, uma fixa e a outra aberta, que possui um enorme potencial de transformação. Todo planejamento territorial imposto é baseado na demarcação fixa, ou seja, no interrompimento de movimentos preexistentes.
Favela: um espaço-movimento. (BERNSTEIN) a temporalização do espaço As três figuras conceituais, são ligadas entre si pela idéia de movimento das favelas. a estética resultante desses espaços – fragmentados, labirínticos e rizomáticos – é, conseqüentemente, uma estética espacial do movimento, ou melhor, do espaço-movimento. O espaço-movimento não seria mais ligado somente ao próprio espaço físico mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo, e ao mesmo tempo, ao movimento do próprio espaço em transformação.
O espaço-movimento é diretamente ligado a seus atores (sujeitos da ação), que são tanto aqueles que percorrem esses espaços quanto aqueles que os constroem e os transformam continuamente. No caso das favelas, os dois atores, podem estar reunidos em um só, o morador, que também é o construtor do seu próprio espaço. A própria idéia do espaço-movimento impõe a noção de ação, ou melhor, de participação dos usuários. Ao contrário dos espaços quase estáticos e fixos (planejados, projetados e acabados), no espaço-movimento, o usuário passivo (espectador), se torna sempre ator (e/ou co-autor) e participante.
Quando se deseja, no momento de urbanizar as favelas, preservar a sua identidade própria, a sua especificidade estética, é preciso se pensar em incentivar a noção de participação, e ao mesmo tempo, conservar os espaços-movimento. A idéia é paradoxal, como se conservar o que se move, se patrimonializar o movimento? Em relação às favelas, se existe algum tipo de intenção patrimonial (no sentindo de preservar a identidade cultural e estética desses espaços) no momento da urbanização, o importante a se preservar não deveria ser nem a sua arquitetura, os barracos, nem o seu urbanismo, as vielas, mas o próprio movimento das favelas, através de seus atores, os moradores.
Os arquitetos e urbanistas no momento de urbanizar as favelas deveriam seguir os movimentos já começados pelos moradores, para ao invés de se fixar os espaços criando enfadonhos bairros formais ordinários, se possa conservar o movimento existente, ou seja, a própria vida das favelas (que é quase sempre muito mais intensa e comunitária do que no bairros formais).Mas esses profissionais geralmente lutam exatamente contra esse movimento "natural", com a finalidade de se estabelecer uma pretensa "ordem". Mas porque não tentar gerir o movimento, orientá-lo segundo uma vontade estética e até funcional (sobretudo técnica), sem necessariamente de um projeto preestabelecido, convencional?
O projeto convencional como já foi demonstrado, é a grande arma dos arquitetos e urbanistas contra o movimento "natural" das favelas, ou seja: contra o fragmento, o labirinto e o rizoma. O projeto, nesse caso, acaba com as potencialidades imanentes do já existente, fixa formas por antecipação, inibe ações imprevistas, e, sobretudo, impede a participação real. Para se preservar o espaço-movimento deve se tentar agir sem um projeto convencional, atuando por micro-intervenções, ou seja, intervenções minimais que sigam o fluxo natural e espontâneo que já existe na favela.
Isto significa respeitar as diferenças dessa arquitetura e urbanismo vernáculos e populares ao se conservar as suas características – fragmentárias, labirínticas e rizomáticas – seguindo a estética que já foi estabelecida pelos próprios moradores, ao invés de se tentar impor uma estética e uma lógica da arquitetura e urbanismo eruditos (que não foram nem pensados nem posteriormente adaptados para esse tipo de situação urbana).