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“Conjuntos residenciais de grande porte – planejados e realizados em grande escala – se tornaram um modelo comum para áreas urbanas em expansão. Especialmente na época posterior à II Guerra Mundial, e durante as décadas seguintes, blocos habitacionais uniformes e monofuncionais cresceram nas periferias urbanas de muitos países. No contexto de um progresso tecnológico avançado e de um modo de construção industrializado, surgiram tipos arquitetônicos fortemente padronizados. Edifícios e apartamentos apresentavam formas e programas estereotipados que, reproduzidos inúmeras vezes, até hoje se mostram muito pouco condizentes com as necessidades heterogêneas dos diferentes moradores que neles vivem. Entre os anos 60 e 80 do século XX, muitos conjuntos, de grande porte e padronizados, foram construídos também no Brasil. Um programa habitacional implantado a nível nacional pela Ditadura Militar, após o golpe de estado de 1964, previa a construção de casas unifamiliares, casas geminadas e blocos de apartamentos com vários andares. No entanto, com o decorrer do tempo, a maioria desses blocos habitacionais passou por diversas reformas e modificações, promovidas por seus moradores No contexto de um desenvolvimento urbano 'informal', onde as atividades construtivas raramente percorrem o caminho das regulamentações e aprovações por parte das autoridades, os usuários dos conjuntos empreenderam intervenções por conta própria e adaptaram seu ambiente residencial às necessidades existentes. As estruturas, que haviam sido implantadas por órgãos estatais numa escala macro, de forma 'top down' – isto é, de cima para baixo –, experimentaram mutações extensas e diferenciadas. De outra parte, as atividades desenvolvidas pelos usuários numa escala micro, de modo 'bottom up' – isto é, de baixo para cima –, expressam um potencial criativo que pode modificar as estruturas arquitetônicas uniformes de uma maneira variada e diferenciada. Uma pesquisa realizada pela autora, entre 2005 e 2007, analisou esses processos de mutação descritos, e comparou a evolução de 4 conjuntos erguidos pela COHAB na Região Metropolitana do Recife¹.
A maioria das mutações observadas surgiu através de iniciativas individuais. Por exemplo, várias janelas adicionais foram criadas, especialmente, nas fachadas cegas que anteriormente não dispunham de aberturas para iluminação. Adicionalmente, ocorreram ampliações dos apartamentos, que agora servem de quartos adicionais ou terraços. No térreo dos blocos, foram construídos anexos para garagens, oficinas e lojas. E até a acessibilidade dos blocos foi frequentemente modificada, muitas vezes pela criação de entradas novas e individualizadas. Algumas modificações construtivas, entretanto, partiram de iniciativas conjuntas que envolveram vários domicílios do mesmo bloco. As áreas de acesso e as escadarias foram, por exemplo, aumentadas e mobiliadas. Com uma definição espacial mais clara e a colocação de alguns bancos e plantas, a utilidade real desses espaços, para os moradores, aumentou de forma significativa. Em alguns casos, também foram adicionadas coberturas para proteger essas áreas da chuva e do sol.
... Com as mudanças construtivas efetuadas, os espaços livres dos conjuntos também foram modificados. A urbanização ficou mais densa. Onde os blocos antes estavam isolados uns dos outros, rodeados por espaços amplos e uniformes, as mudanças posteriores criaram morfologias variadas e diferenciadas. Através da expansão de alguns edifícios, ou partes deles, configuraram-se espaços públicos desuniformes. Os espaços mais estreitos foram interpretados e utilizados como travessas e corredores, e os espaços mais largos serviram como pátios e praças. As gradações entre zonas mais abertas, ou acessíveis, e zonas mais retiradas, ou reservadas, mostram-se também alteradas, assim como as formas de comunicação entre os espaços internos e externos dos edifícios. Quem atravessa os conjuntos andando a pé, desfruta agora de diferentes ângulos de visão e diferentes experiências espaciais. Além disso, as numerosas novas entradas possibilitaram o surgimento de diversas ligações adicionais. Com isto, os circuitos de circulação se modificaram, formando-se uma rede complexa de caminhos que conectam os novos acessos com os anteriormente existentes no conjunto.
Desta maneira, as modificações construtivas nos conjuntos significam, ao mesmo tempo, modificações das possibilidades de uso e dos hábitos de comportamento. Em muitos casos, não surgiram apenas expansões dos espaços individuais das moradias, mas também novas formas de relacionamento social, seja para um prédio ou para um conjunto inteiro.
Os processos de mutação descritos foram determinados por uma combinação de diferentes fatores. De uma forma geral, eles foram influenciados por fatores sociais – relacionados aos usuários dos conjuntos –, e por fatores locais – definidos por cada sítio. Na análise dos fatores sociais presentes foram considerados dados sócio-demográficos e sócio-econômicos dos moradores, assim como as dinâmicas sociais existentes em cada conjunto. Com isto, diferentes influências possíveis foram identificadas. Em muitos casos, o elevado número de pessoas morando juntas em um mesmo domicílio deu origem a uma maior demanda de expansões construtivas. Às vezes, a realização de expansões partiu também do desejo de abrir uma oficina ou uma loja, ou de dispor de um local para estacionamento protegido. A identificação dos moradores com seu entorno habitacional cria a base para a tomada de iniciativas de modificação. A renda disponível define as condições econômicas para a realização de investimentos concretos. Por fim, a organização social no interior do conjunto, do prédio, e do domicílio é de importância decisiva para a colocação em prática das intervenções desejadas.
Os fatores locais que podem ser considerados relevantes para o surgimento das mutações observadas foram especificados através da análise detalhada de cada local. Demonstrou-se que a integração na malha urbana existente, e especialmente com o sistema de transportes, funciona como parâmetro para uma maior ou menor necessidade de ofertas adicionais dentro dos conjuntos. A precariedade da infraestrutura de apoio, frequentemente constatada nos objetos de estudo, tem como consequência a criação de uma demanda por edificações específicas, para usos comerciais e de prestação de serviços. As condições climáticas e topográficas, por sua vez, definem os fundamentos concretos para as intervenções arquitetônicas possíveis e necessárias em um determinado local. Além dos fatores sociais e dos fatores locais, também a estrutura espacial existente determina, de forma decisiva, as possíveis modificações posteriores. Nos 4 conjuntos analisados, os blocos residenciais originais podiam parecer aparentemente iguais, mas ofereciam condições específicas para as ambições de reformá-los ou transformá-los.
A localização de cada edifício, por exemplo, exerce um papel essencial. Diferentes disposições dos blocos, no terreno, geram diferentes possibilidades para as expansões arquitetônicas. Maiores distâncias entre dois edifícios vizinhos favorecem a abertura de janelas e a criação de entradas adicionais. Fachadas implantadas ao longo das ruas dispõem de uma localização visualmente destacada e de uma maior frequência de passantes. Desta forma, possibilitam a construção de anexos para estabelecimentos comerciais. E através de uma análise criteriosa do arranjo dos blocos no terreno, diferentes desníveis entre prédios e ruas podem ser aproveitados para a criação de um andar adicional no nível térreo.
As características físicas dos edifícios – tais como os materiais e sistemas construtivos empregados e as formas adotadas – também influenciam as mutações construtivas possíveis. No caso dos conjuntos analisados, suas paredes de alvenaria possibilitaram, de forma simples, a abertura de janelas e portas. Já o sistema construtivo baseado em paredes estruturais, estabelece certos limites para as transformações nos edifícios. Devido às numerosas modificações nas paredes originais dos conjuntos estudados, a estabilidade de alguns blocos ficou comprometida, levando, em alguns casos, a interdições temporárias ou permanentes. Por fim, a forma de um edifício define certos parâmetros morfológicos para as possíveis modificações. Diferentes 'tipos' originais favorecem, por exemplo, diferentes formas de expansão dos blocos. Nas unidades residenciais térreas, acontecem, com frequência, expansões laterais e, sobre estas, outras expansões nos andares superiores. Já nos blocos construídos sobre pilotis, o espaço entre os pilares, no térreo, é utilizado para a criação de garagens, lojas ou novas moradias. Neste caso, as unidades adicionais surgem exatamente embaixo das unidades já existentes.
Para o entendimento das modificações realizadas nos blocos, devem ser levadas em conta, também, suas interações com os elementos de escala inferior – por exemplo, os apartamentos – e escala superior – por exemplo, o conjunto inteiro. Uma comparação entre diferentes apartamentos nos mostra como alguns quartos, pouco iluminados e ventilados no projeto original, praticamente induziram à abertura de janelas adicionais. Por exemplo: um apartamento-tipo de42 m², suficientemente iluminado e ventilado através das janelas originais, apenas uma vez apresentou, nos blocos analisados, uma nova janela na fachada cega lateral. Já um outro apartamento-tipo, de 52 m², era mal iluminado e pouco ventilado, especialmente pela fachada lateral. Em consequência, recebeu nessa fachada, em muitos casos, novas aberturas. Analisando-se esses conjuntos, num recorte maior, observamos como a localização de ruas e caminhos pode influenciar a localização das possíveis expansões. Onde as conexões existentes previam percursos longos demais para acessar o conjunto ou instituições importantes, os moradores criaram caminhos alternativos que cruzam o terreno da forma mais curta e favorável aos usuários. Em consequência, as áreas necessárias para isto permaneceram sem qualquer construção.
Resumindo, pode-se destacar que o 'potencial arquitetônico' definido por um edifício existente contribui de forma decisiva para o desenvolvimento das mutações posteriores. Se por um lado, ele oferece aos desejos de modificação, oportunidades concretas de realização e configuração, por outro, determina limites para sua própria capacidade de ser modificado. De tal modo que, os elementos flexíveis ou robustos que o compõem, delimitam as possibilidades de sua futura 'evolução' arquitetônica.
O PLANEJAMENTO DE CONJUNTOS RESIDENCIAIS NA ATUALIDADE
Da análise detalhada das mutações observadas, e de suas possíveis causas, também se podem deduzir consequências e perspectivas para o planejamento de conjuntos residenciais no futuro. Neste âmbito, as experiências dos conjuntos construídos na Região Metropolitana de Recife adquirem valor considerável, não apenas por sua dimensão histórica. Uma compreensão mais aprofundada dos processos aqui descritos – especialmente, as interações entre as estruturas arquitetônicas originais, produzidas pelo Estado, e suas modificações posteriores, realizadas pelos usuários e moradores – nos revela, hoje, sua atualidade e relevância, também para os novos projetos urbanísticos que venham a ser projetados no futuro.
Com base nas mutações analisadas, novos tipos de edifícios podem ser concebidos, incorporando e desenvolvendo as modificações observadas in sito. Desta maneira, novos incentivos podem vir a ser criados, para o desenvolvimento urbano da Região Metropolitana do Recife. A atual política habitacional brasileira pode ser considerada inovadora em seus esforços, visando possibilitar que os futuros usuários e moradores participem ativamente da construção e reforma de moradias populares. No entanto, essa política se concentra, quase que exclusivamente, na edificação de casas unifamiliares, de pequenas dimensões, que raramente conseguem responder, de maneira adequada, às exigências complexas de um habitat urbano. Além disto, a construção de casas isoladas não se constitui num modelo eficiente para o combate ao déficit habitacional do país, avaliado em cerca de 8 milhões de unidades. A coragem de novamente promover a construção de projetos habitacionais de interesse social, de grande porte, aportaria, no atual contexto, um enriquecimento importante à arquitetura brasileira, desde que esses conjuntos apresentem, já na sua concepção, certas flexibilidades para a acomodação das necessidades e desejos diferenciados dos moradores.
Partindo desta idéia – a possibilidade de adaptação e mutação –, novos ângulos de visão se abrem, também numa escala superior. As potencialidades dos processos identificados nos estudos de caso da periferia do Grande Recife apontam para fenômenos mais gerais da evolução tipológica, válidos independentemente do local, e que poderiam ser considerados na prática arquitetônica geral. Esses processos nutrem uma visão de planejamento, segundo a qual os objetos arquitetônicos não devem ser criados como produtos acabados e fixos, mas possam se ligar, sempre, a possíveis usos futuros. Nesta linha, os tipos arquitetônicos devem sempre ser postos à prova, na realidade edificada e no uso cotidiano, adaptando-se e, se necessário, reconstituindo-se. Neste sentido, a 'flexibilidade' se revela uma qualidade fundamental para o alcance de uma arquitetura sustentável. É ela que oferecerá espaços às próximas gerações de usuários, e lhes permitirá adaptar seu ambiente, sempre de novo, às necessidades diferenciadas. Um edifício capaz de ser adaptado durante o uso poderá funcionar melhor que aquele que apresente resistências estruturais excessivas a essas mutações, pois permite uma melhor otimização de sua utilização a longo prazo, assim como uma eficiência maior no consumo de energia e de materiais.
Sem dúvida, é no estudo dos processos de utilização e apropriação da arquitetura, e também das atividades construtivas correlatas, que se encontra uma fonte de informação e inspiração indispensável para arquitetos.”
publicado originalmente em 16/04/2010 -
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NOTA
1. Com base nessa pesquisa, originou-se a Tese de Doutorado da autora: "Mutações de estruturas habitacionais em Recife / Brasil". Título original: Mutationen städtischer Siedlungsstrukturen in Recife / Brasilien. Acessível emhttp://www.ub.tuwien.ac.at/diss/AC05036455.pdf. Os conjuntos analisados na pesquisa são:Maranguape I, Marcos Freire, Muribeca, e Rio Doce IV, todos implementados pela Companhia de Habitação (COHAB) de Pernambuco. |
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