Na França, o projeto do presidente Nicolas Sarkozy, chamado Le Grand Paris, tem encontrado muita resistência para sair do papel. Como está caminhando o seu trabalho na capital francesa?
Fui assessor do [ex-presidente François] Mitterrand na França, em trabalhos relacionados ao ambiente físico. Ao longo do tempo, os governantes foram percebendo o vínculo que há entre a qualidade de vida e os ambientes construído, o intelectual e o econômico, até que, estreitando a abordagem, o presidente Sarkozy convidou dez escritórios para pensar a Paris do futuro. Metade deles franceses, metade de outros países. Pusemos lado a lado as condicionantes econômicas, juntamos equipes de engenharia e, olhando para Paris numa dimensão política, de infraestrutura e espaços públicos, tentamos pensar lá na frente. Nós nos concentramos em áreas específicas da cidade, embora guiados por uma abordagem abrangente.
O que visualizamos muito rapidamente foi a grande diferença que há entre o centro de Paris e o seu entorno. São cerca de 2 milhões de habitantes contra 7 milhões nos arredores. É uma cidade clássica, formada por um centro e seus anéis, como numa árvore. O centro funciona bem, mas fora dele há problemas sérios. O problema, então, se tornou olhar para a periferia e pensar como introduzir sustentabilidade nesse sistema territorial e político segregado de Paris, melhorar a qualidade de vida do seu subúrbio. Todo lugar tem algum tipo de centro que pode ser enfatizado através de operações simples, como uma parada de ônibus ou de trem, talvez uma casa de saúde, por exemplo. Procuramos por esses centros nos arredores de Paris e, além disso, pensamos num modo de oferecer transporte de boa qualidade para os seus moradores.
Ao que tudo indica, essa questão dos transportes é o que sobreviverá do ambicioso Le Grand Paris. A opinião pública parece pouco afeita às intervenções arquitetônicas propostas pelo plano.
Você tem que pensar no plano como uma consulta política, não como um projeto tradicional e consolidado. Olhe, nos últimos milênios as cidades existiram pela mesma razão, são lugares de encontro. Nada mudou nesse sentido, cidades continuam sendo centros sociais e econômicos, embora, é claro, tenham mudado as condições tecnológicas. Em Paris, então, a questão é o que fazer com as áreas periféricas, como torná-las locais de encontro e, junto com isso, pensar no que fazer com o transporte público regional.
Na Inglaterra, por exemplo, é proibido construir fora da cidade, em área que não tenha sido usada antes. Temos tantas áreas abandonadas por causa das mudanças industriais, da pobreza, enfim, que não faz sentido espalhar a cidade. Precisamos de centros urbanos compactos. Usar essas áreas livres antes de expandir para algum lugar é o único modo de criar um ambiente sustentável. Vocês deveriam pensar nisso aqui no Brasil. É simples, temos que aumentar a densidade populacional e diversificar o transporte público.Sustentabilidade é uma questão de adequar as cidades existentes, não apenas um problema técnico ou energético.
Essa segregação entre centro e periferia, ricos e pobres, é um fenômeno mundial?
Em Londres há regras para evitar a segregação, a favelização da cidade. Construir muros é algo restritivo lá, por isso acho estranhos esses condomínios fechados que vocês têm aqui no Brasil. Não faz sentido se apropriar da infraestrutura pública em proveito do domínio privado. Mas segregação é algo ruim tanto aqui como em qualquer outro lugar do mundo. O caminho da sustentabilidade é inverso, fazer com que as pessoas se misturem nas cidades. Paris tem que expandir seus locais de lazer urbano para além do círculo central. Não importa se no contexto residencial ou no comercial, temos que encontrar espaços para implantar novas centralidades urbanas e isso, sim, é algo que depende do bom desenho, porque o ambiente físico afeta diretamente o modo como vivemos. E o modo como vivemos afeta diretamente o ambiente físico, há uma reciprocidade. A qualidade do desenho é uma questão crítica.
Todo mundo gosta de Veneza, por exemplo, porque entendemos a beleza dos seus lugares, suas praças propiciam momentos de relaxamento, suas passagens funcionam bem e o gabarito compensa a irregularidade do traçado urbano. Enfim, o fenômeno da segregação é de certa forma mundial e tem que ser combatido através da eficiência do ambiente sustentável, do transporte público decente e, claro, da justiça urbana. Não se pode permitir tantas defasagens entre as classes econômicas. Há locais com diferenças mais acirradas e outros melhores em termos de igualdade social. O Brasil tem muito trabalho a fazer nesse sentido, vocês deveriam olhar para si mesmos e perceberem o quanto são afortunados. Olhem para o seu povo e sejam vocês mesmos. São esses alguns dos princípios da sustentabilidade urbana.
Sustentabilidade é uma questão de adequar as cidades existentes, não se trata apenas de um problema técnico ou energético. O caminho da sustentabilidade é inverso da segregação, é fazer com que as pessoas se misturem nas cidades.
As cidades chinesas, em função do crescimento acelerado, apresentam condicionantes especiais de desenho arquitetônico e urbano?
Temos um projeto não construído em Xangai, no qual priorizamos o domínio público. Todos temos direito à vista de uma árvore em nossa janela, ao espaço para a diversão, a ter um parque a dez minutos de casa, enfim, direito ao que é essencial do espaço público. Cidades como Nova York e Barcelona já têm bons espaços públicos, Londres está mudando, temos uma centena de novos espaços públicos lá e estamos cuidando para unir uns aos outros. Em Paris também estamos no mesmo caminho. Um aspecto interessante na China é a movimentação do pedestre em algumas cidades: andar de bicicleta é um aspecto elementar do direito urbano.
Há 15 anos marquei um encontro com o prefeito de Xangai e elogiei a proporção de bicicletas para a de habitantes, algo como 7 milhões para 9 milhões nos anos 1980. Ele não me entendeu, achou que eu estava propondo mudanças. Já em Pudong [distrito de Xangai], onde também temos um projeto, é impossivel andar de bicicleta. Pudong foi feito para os carros. Há boas e más histórias na China, a sustentabilidade é crítica lá porque eles crescem muito rápido. Xangai cresceu em dez anos algo equivalente a uma Londres ou uma Nova York. Nesse cenário, estaremos nos destruindo se não garantirmos o direito à cidade.
Como os arquitetos podem contribuir politicamente para a criação de uma cidade melhor?
Os governantes são um canal eficiente para fazer cidades de sucesso, compreensíveis cultural e socialmente. O oposto é a privação dos direitos do cidadão. Precisamos de cidades que funcionem, que sejam vivas, como algo essencial ao sucesso econômico e político. Eu sempre disse que arquitetura é política.
Poderia citar bons exemplos do que o senhor denomina arquitetura política?
Barcelona foi a melhor cidade olímpica, muito até em função de uma sequência de três ótimos prefeitos. O que temos que pensar é que se gasta numa Olimpíada algo em torno de 10 bilhões de euros, de dólares, seja lá o que for, e isso não pode acontecer a troco de nada. Tem que haver a recompensa de uma cidade agradável, sustentável, que funcione bem. A estratégia de Barcelona foi brilhante: renovar o caminho do mar, dar uso às terras abandonadas e usar o dinheiro da Olimpíada para ligar a cidade ao mar.
Em Londres foi diferente, os Jogos Olímpicos estiveram a serviço dos bairros mais pobres. A cidade tem 32 bairros, sendo os três mais pobres muito pobres, não como as favelas no Brasil, mas ainda assim muito pobres mesmo, e nós inserimos a Olimpíada bem no seu meio para gerar um renascimento arquitetônico e econômico. Criamos um grande parque no centro dessa área pobre e, no meio dele, está localizada a Vila Olímpica, o centro comercial, entre outras coisas. Percebemos que 30% dos esforços eram para a Olimpíada e o restante era para garantir qualidade de vida urbana.
Acho que é o que deveria ser feito também no Brasil, melhorar as áreas pobres com os recursos dos Jogos Olímpicos. O que quero dizer é que a Olimpíada é um problema técnico, que a questão não é construir um estádio. O que importa é a qualidade de vida, porque quando o evento termina devem perdurar seus efeitos por centenas de anos.
Olhando em retrospectiva, em que momento o senhor percebeu que a arquitetura é uma atividade política?
Nasci em Florença, acho que desde sempre percebi que são interligadas as dimensões social, política e arquitetônica. Arquitetura é escolher se a melhor opção é construir uma praça ou um estacionamento, não o modo como o carro vai entrar ou sair do estacionamento. Interessa é pensar como as pessoas vão aproveitar o lugar, como terão condições de se divertir numa praça, conversarem, marcarem encontros. O real valor da arquitetura é proporcionar melhor qualidade de vida. Não estaríamos aqui hoje, nessa praça [no Centro Cultural dos Correios, no Rio de Janeiro], se não fosse assim.
Nesse sentido, que obra ou arquiteto o senhor admira?
O meu favorito é [Filippo] Brunelleschi. Gosto da Renascença de Florença, assim como do protomodernismo. Mas é muito difícil escolher um edifício, eu apontaria vários porque as coisas foram mudando, a vida se transformou bastante. Há centenas de anos nem se pensava no conceito de ambiente sustentável, o mundo como o conhecemos hoje tem dez anos. Podemos nos conectar com a Nova Zelândia e o Canadá, o Brasil está no meio do caminho.
Como foi para o senhor, um estudante de arquitetura...
Foi terrível, fui um péssimo estudante.
Eu queria me referir à possivel influência do trabalho de seu primo, o arquiteto Ernesto Rogers, que foi editor de revistas como Casabella e Domus nos anos 1950 e 1960.
Mais importante foi a influência do pai dele [o arquiteto aponta para Simon Smithson, um dos sócios do escritório Rogers Stirk Harbour + Partners e filho dos arquitetos ingleses brutalistas Alice e Peter Smithson]. Ele exerceu uma fantástica influência na minha formação. Comentei com Simon hoje pela manhã que Ernesto Rogers esteve aqui no Brasil, em 1953. Foi um dos jurados, com Alvar Aalto, da Bienal de São Paulo. Claro que a proximidade do Ernesto me ajudou em certo sentido, como nos primeiros trabalhos que tive no escritório dele.
Mas a verdade é que nasci numa família que nunca se chocou com o novo, uma família moderna, e isso teve aspectos bons e maus. A Inglaterra era muito moderna. Mas eu penso um pouco antes disso até, considerando edifícios industriais como o Palácio de Cristal, que vai além de uma construção clássica. De qualquer forma, meu pais eram modernos, me lembro deles comprando Picasso e os vizinhos achando aquilo muito ruim.
A construção de um de seus primeiros projetos, a casa Creek Van, foi financiada com a venda de um Mondrian. Foi uma grande responsabilidade para o senhor fazer bom uso daquele dinheiro?
Achei horrível. Aquele Mondrian foi vendido por nada e, hoje, vale muito.
Esta é sua primeira visita ao Brasil?
Estive aqui há 20 anos, mas foi tão corrido e cheio de compromissos que nem consegui ver a cidade. O Rio de Janeiro mudou muito desde então, mas continua lindo. Acho que por causa da natureza e da sua relação com o ambiente construído. Não pode haver cidade mais bonita do que esta. O prefeito me emprestou nesta manhã um helicóptero e felizmente pude sobrevoar a cidade. Pensei: é Deus em pessoa, qualquer que seja esse Deus. Há as montanhas, a urbanização e há também certa inteligência na forma adensada da ocupação. O problema é o transporte público.
Por Evelise Grunow
Publicada originalmente em PROJETODESIGN